Introdução a Bakhtin :: 2004/2

Prof. Dr. Eduardo Granja Coutinho. Este ciclo de leitura teve como resultado uma série de textos produzidos pelos alunos do PET-ECO. Acesse clicando aqui.

Estudo das Ideologias e Filosofia da Linguagem
Por Lucas Travassos Telles e Maria Flor Brazil

Nesse primeiro capítulo da análise da importância da filosofia da linguagem para o marxismo, Bakhtin demonstra de que forma é possível estabelecer uma relação entre a ideologia e a linguagem. A base dessa relação está na afirmativa do autor de que a palavra é signo neutro. Essa neutralidade se deve ao fato de a palavra ser o signo através do qual todas as ideologias e formas de organização de pensamento na sociedade são explicados – seja no campo da arte, ciência ou religião. Sendo um código estabelecido socialmente e compartilhado por todos os membros de uma sociedade, apenas a palavra pode organizar e tornar clara uma ideologia, mesmo para aqueles que não compartilham de seus pressupostos. Assim, os signos fazem parte do que Bakhtin chama de terreno interindividual. Isso não significa que a palavra tenha a capacidade de por si só abarcar todos os signos ideológicos. Gestos humanos, músicas ou pinturas não podem de forma alguma ser substituído por palavras, mas a possibilidade de existência e de interpretação dessas manifestações estará sempre intermediada por elas.

A palavra é desenvolvida pelo homem através do convívio social. Dessa forma, os valores culturais e ideológicos e a palavra são desenvolvidos de forma simultânea, um influenciando o outro. Isso faz com que os signos estejam sempre carregados de diferentes significados, que vão sendo agregados a ele desde a sua criação. Dessa forma, todos os signos estão marcados desde sua origem por valores ideológicos. Essa demarcação reflete uma determinada ideologia, ao mesmo tempo em que refrata os significados atribuídos por outras linhas ideológicas, o que significa afirmar que “a realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais” [1]

Bakhtin critica a filosofia idealista e uma linha da psicologia mais próxima ao positivismo por darem muita ênfase a consciência e deixarem de analisar os aspectos ideológicos dos signos. Ignorando o fato de “a palavra[ ser] um fenômeno ideológico por excelência” [1], essas duas disciplinas acabam cometendo um grande erro: a primeira supervaloriza a ideologia, como sendo uma entidade que paira sobre e sociedade e tudo nela determina; a segunda reduz a ideologia apenas à reações psicológicas particulares de cada indivíduo. O que ambas não consideram é o que Bakhtin chama de palavra interior. Toda a formulação, mesmo que feita pelo consciente de cada indivíduo, é sempre mediada por signos socialmente estabelecidos e, dessa forma, fortemente influenciada por diferentes ideologias. Os signos são fragmentos materiais da realidade porque a refletem, ao mesmo tempo que refratam qualquer outra forma de entendê-la.A consciência individual é elaborada através do repertório de signos colecionados pelos indivíduos ao longo da vida. É a partir de signos anteriores que os novos serão assimilados. Nessa relação de assimilação há sempre uma reestruturação do signo a partir de um ponto de vista específico. Ao signo são, dessa forma, agregados constantemente novos valores, o gerando uma constante transformação dialética. O signo conserva seus significados anteriores, que estão sempre sujeitos a transformações. E a mudança de significação de um signo é claramente uma questão do campo das lutas ideológicas.

É dessa forma que Bakhtin encontra a base para estudar a relação entre signo e ideologia. Os usos e conseqüências desse pressuposto serão expostos nos capítulos seguintes.

Referências Bibliográficas:

[1] Mikhail Bakhtin, “Estudo das ideologias e filosofia da linguagem”, IN: Marxismo e Filosofia da linguagem. São Paulo, Editora Hucitec, 8ª edição, p.36, 1997.

A Dialética do Signo nas Superestruturas
Por Daniel de Jesus e Fábio Savino

A relação entre a infra-estrutura e superestruturas é considerado um dos problemas fundamentais do marxismo segundo Mikhail Bakhtin. A “causalidade”, genérica e ambígua, respondendo ao fato da infra-estrutura determinar a ideologia, é uma explicação que isola o fenômeno de seu contexto ideológico e não tem representação cognitiva. É difícil até mesmo considerar uma transformação ideológica independente, quando toda a esfera ideológica é um conjunto único. Ou seja, todos os elementos reagem a uma mudança na infra-estrutura. Sendo assim, o mais prudente seria seguir as etapas de transformação para entendê-las como parte de um corpo único, e não estudá-las a partir da convergência de dois fenômenos isolados em laboratório. O processo é caracterizado por uma evolução social dialética, surgindo da infra-estrutura e tomando forma à medida que alcança as superestruturas.

A dialética é a essência deste problema, em desvendar como a realidade determina o signo, e como este reproduz a realidade. As palavras enquanto signo ideológico são um interessante meio de estudo, pois penetram as relações entre os indivíduos nas mais diferentes situações cotidianas. As palavras amarram as relações sociais com fios ideológicos, sendo, portanto, um excelente indicador das transformações sociais. Sejam elas as mais íntimas ou efêmeras mudanças sociais. A relação entra superestrutura sócio-política e a infra-estrutura ideológica é chamada de psicologia do corpo social e materializa-se na interação verbal. Essa psicologia é exteriorizada na palavra, no gesto, no ato. É nela que se encontram as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta.

Essa troca de material, principalmente verbal, reage sensivelmente às mudanças sociais. Ou seja, os temas gerados nas pequenas interações, são transportados em tipos e formas de discurso modificados e modificadores do primeiro. As normas e etiquetas no falar e no se comportar estabelecem fronteiras e regiões onde as interações verbais se dão. O signo é fruto dessa organização social e do reconhecimento que determinado grupo dá a ele. Uma alteração da organização, reconhecida por todos, resulta na modificação do signo. Vale a pena ressaltar o aspecto dialético dessa mudança. O signo é modificado pelas interações sociais, na mesma medida que essas interações são estabelecidas pelos signos.
Toda essa variação se dá dentro do tempo da história de determinado grupo. E um objeto só pode tomar valor num meio social específico, se estiver ligado às condições sócio-econômicas daquele meio. O árbitro desse jogo é a sociedade. Os índices sociais de valor de um indivíduo se exteriorizam nas relações sociais, e podem ou não, serem incluídas e acabarem por alterar a estrutura. Todavia, apesar do consenso da comunidade semiótica em relação ao signo, ele pode acabar refratado de formas variadas, e com variantes na sua leitura. Isso se deve a luta de classes. A diferença nas classes sociais é um meio de transformação do signo. Onde as diferenças de classes tendem a estabelecer valores diversos ao mesmo signo.

Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva
Por Anna Virginia Sinclair e Suzana Corrêa Barbosa

O sentido de uma palavra não existe em si mesmo, mas, ao contrário,
é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são (re)produzidas.

Michel Pêcheux

Se nos detivermos na frase de Michel Pêcheux, saltarão aos nossos olhos afinidades bastante contundentes entre este analista de discurso, que compartilhou a época, a origem francesa e o primeiro nome com outro pensador caro para o círculo acadêmico, Michel Foucault, e Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem e crítico literário que testemunhou o advento da Rússia Socialista na primeira metade do século. Ao menos uma indagação incisiva parece-nos manifesta à primeira análise: o que, afinal, teria feito dois homens que se encontram separadas de forma tão significativa pelos tapumes do tempo e do espaço perpetrarem seus respectivos discursos com falas tão em sintonia uma com a outra?

Pode ser que a resposta, ou ao menos parte dela, esteja contida na própria sentença de Pêcheux, que, intencionalmente ou não, retoma a fala bakhtiniana em muitos de seus aspectos mais relevantes. No processo de dialogia proposto por Bakhtin e, de certa forma, espelhado no pensamento de Pêcheux, tudo aquilo que é dito pode ser inserido numa cadeia infinita de enunciados que nunca perdem o nexo uns com os outros. Assim sendo, tornar-se-á fundamental que todos “renunciemos aos nossos hábitos monológicos”, como defendia Bakhtin, uma vez que é por ser re-significada e reproduzida a todo instante que a linguagem se distingue por sua faculdade de dialogar com outras idades e culturas.

Mas o que levou Bakhtin a considerar tanto a linguagem, a ponto de tomá-la como fio condutor de seu pensamento acerca das relações e tensões sociais que constituem a vida do homem? Ora, o signo é a arena da luta de classes. A palavra é o signo ideológico por excelência e lugar-comum tanto do psiquismo quanto da ideologia. Extremar um termo limítrofe que separe os dois campos, quando não sub-reptícia, é uma escolha no mínimo assaz ingênua. Afinal, para ser assimilado, o fenômeno ideológico terá que ser necessariamente decifrado na esfera do signo interior. Caso acreditássemos que o homem carece de qualquer tipo de tensão interior, como se todos os seus dramas não lhe pertencessem e sua totalidade psíquica fosse completamente administrada por um fenômeno que lhe é alienígena, estaríamos o reduzindo a um títere social, uma reles estatística, um ser tão-somente reativo, e não pró-ativo, às mudanças que ocorrem ao seu redor. Não é bem assim.

Em suas próprias palavras, “os processos que, no essencial, determinam o conteúdo do psiquismo desenvolvem-se não no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles”. Portanto, podemos depreender que, não obstante Bakhtin deseje produzir uma análise objetiva da nossa consciência através da filosofia da linguagem, em nenhum momento ele ignora as relações dialógicas que se estabelecem entre psiquismo e ideologia. De acordo com Bakhtin, toda atividade mental é exprimível e sua exteriorização vale-se do material semiótico para se materializar. “Todo produto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintintivos das manifestações ideológicas.”

Assim que é proferida, a língua automaticamente denuncia o conteúdo sócio-ideológico que lhe é inerente. Ao contrário do que se faz crer no psiquismo, a consciência não é a expressão inalienável da individualidade humana, mas sim um fenômeno que pode – e deve - ser circunscrito dentro do material ideológico de sua época. Mesmo pensar o sujeito enquanto um indivíduo que detém a autoria de seu pensamento ou a espontaneidade de sua fala é, em última instância, uma reflexão ideológica. (Pois aqui o pensamento bakhtiniano escancara sua herança marxista, porquanto aceita que “não é a consciência do homem que determina o ser, mas é o ser social que determina a consciência.”)

Na verdade, o homem-indivíduo é, antes e acima de tudo, uma construção cujas entranhas são preenchidas por uma forte carga de ideologia burguesa. Esta, por sua vez, estaria a toda hora diligenciando mostrar-se ao mundo como uma espécie de sistema de idéias mais fidedigno à natureza humana. Pois isto é o mesmo que dizer que ideais como liberdade, igualdade e fraternidade – ou pelo menos a interpretação capitalista para cada um deles – atuam como representantes legítimos de aspectos que, antes da Revolução Francesa, operavam de forma latente (porém inextirpável) na humanidade, quando o mais provável é que a mesma Liberte, Egalité et Fraternité francesa seja tão-somente uma construção sócio-ideológica, cujo significado foi extraído a partir de uma série de confluências no jogo histórico.

À vida, noções particularmente burguesas do amor, da família e do trabalho, por exemplo, são assimiladas e intuídas como intrínsecas à natureza do homem. Não são. Amar, pelo menos da forma como hoje o fazemos, não é um código inabalável de nossa condição humana. Outros já amaram de formas diferentes em épocas diferentes, e que hoje poderiam nos parecer estranhas e até mesmo erradas. Uma das idéias mais vendidas do capitalismo protestante, a de que o trabalho seria a mais nobre forma de elevação espiritual do indivíduo, seria vista de uma maneira muito diferente – mas não necessariamente inferior ou superior – pela Roma antiga ou quiçá pela Nova York dos dias de hoje.

E ainda: como ideologia dominante, não é de se estranhar que a burguesia busque apagar o caráter plurivalente do signo e naturalizar uma concepção de mundo que se adapte aos seus interesses e à aparelhagem de seu corpo ideológico. Signo é poder. A história é, portanto, o relato dessa busca pelo poder. Disso decorre uma acusação, a manipulação, e uma vítima, a massa. Mas o que é massa? Ou ainda, o que é manipulação? Será que existe mesmo uma elite burguesa que se encerra numa sala em algum lugar obscuro do mundo para determinar as melhores estratégias (políticas, econômicas, culturais, semiológicas etc.) que serão aplicadas para controlar esta “massa” restante?

Ora, fabular um inimigo de trajes maquiavélicos – neste caso, a burguesia – com a capacidade – e a fleuma – para manipular o resto da sociedade é uma alternativa que peca tanto pela simplicidade quanto pela obviedade de suas pretensões. Se a história pode de fato ser escrita como uma história de dominantes e dominados, as fronteiras que separam os dois mundos não são de forma alguma inequívocas. Muito pelo contrário.

Na realidade, a forma como a ideologia burguesa encontrou para ser canonizada e solidificada como a ideologia dominante é um processo tão complexo e sofisticado que nem sempre o carcereiro, ou seja, o burguês, consegue escapar ao cárcere que ele próprio confeccionou para “manipular” as massas e acaba de fato acreditando na preponderância, ou melhor, na univocidade da sua ideologia perante todas as outras, como se, de certa forma, houvesse uma realidade unidimensional onde nenhuma mudança fosse possível. Pois é preciso reconhecer que, para garantir sua sobrevivência, o processo ideológico precisará contagiar todos os degraus da hierarquia social.

O discurso não se configura necessariamente dentro de uma lógica evolutiva. Passado e futuro entremeiam-se em uma teia inconsútil de signos e significados que, por sua vez, tornam-se cúmplices no tempo e na história através do estabelecimento de um elo dialógico entre eles. Às vezes, voltar atrás pode ser uma forma de dar um passo adiante; são, afinal, as condições de existência humana que determinam o uso do signo e do discurso, e estas serão irrevogavelmente inseridas dentro de uma dada perspectiva histórica.

A língua não pode ser definida como um sistema, uma vez que, sendo movida e edificada por sujeitos concretos, não goza nem de homogeneidade nem de estabilidade suficiente para tal. Não estamos, é claro, afirmando que o dinamismo lingüístico se liquefaça em uma espécie de abismo niilista, sem qualquer tipo de parâmetro que aja como mediador ou regulador dentro do jogo discursivo. Podemos, sim, acusar a existência de códigos – aqui estamos falando de todos eles, desde os lingüístico-culturais até os sócio-econômicos – desde que admitamos que estes possuam um prazo de validade que, destarte, irá eventualmente expirar. (Embora seja certo afirmar que ainda não temos – e provavelmente nunca teremos - um bisturi metodológico para determinar o quando, o como ou o porquê deste processo com a precisão cirúrgica que muitos teóricos gostariam).

Daí inclusive parte a crítica de Bakhtin ao objetivismo abstrato de Saussure, que pensa a língua como algo estático e externo ao sujeito. Posicionando-se mais uma vez contrário a Saussure, Bakhtin também defendia a idéia de que o estudo da língua deveria começar pela fala, e não pela linguagem. Uma vez habilitada para ser o objeto de análise desta nova filosofia da linguagem, a fala deixa de ser tratada como uma singularidade – uma exposição do individual e, portanto, improfícua na hora de avaliar o coletivo - e passa a expor as querelas sócio-culturais de um grupo.

A elegia contemporânea é encenada por um homem que se assume ao mesmo tempo revolucionário e conservador, e que a toda hora encontra-se capturado numa relação dialética com o seu patrimônio cultural. Nenhuma ideologia se resolve com facilidades: o acervo cultural de um povo encontra-se em um estado interrupto de renovação e atualização e, à medida que o signo é relaborado, novos significados vão sendo depositados e formas diferentes de pensar ganham força na sociedade. Nas palavras de Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Acima de tudo, Bakhtin é um autor que antecipa a morte de suas palavras e que, inclusive, aguarda-a com inegável entusiasmo. Não vejamos, porém, a morte como um fim, uma extremidade que extirpe para sempre a abertura dialógica entre tudo o que foi dito e tudo o que ainda paira por dizer, se a proposta aqui deslanchada é justamente a oposta. O que Bakhtin deseja é ter sua própria voz voltada contra si mesma, convocando-nos para viver em um mundo que tem como única certeza a incerteza e que, gostemos ou não, sempre será dialético e polifônico, incerto e paradoxal, dinâmico e imprevisível. Nenhuma palavra é a última palavra, nenhum signo encerra um só significado e nenhum começo nasce entregue a seu epílogo. Ser capaz de mudar a si próprio e o meio que o circunda com não é uma escolha, é uma vocação. Até, é claro, que se prove o contrário.


Cultura Popular segundo Bakhtin e Cultura da Pós-Modernidade
Por Pedro Aguiar e Rafael Vargas

Prólogo

Quem já assistiu a um enterro em Nova Orleans, Louisiana, experimentou a dualidade de sentimentos expressa por uma banda de jazz que durante o cortejo toca músicas melancólicas e, em seguida, sai do cemitério fazendo festa com músicas eufóricas.

Esta cena pode provocar espanto, repúdio ou até indignação por indivíduos de outras culturas, mas essa expressão cultural é uma manifestação legítima da cultura cômica popular.

Na introdução de seu livro “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, o crítico literário russo Mikhail Bakhtin faz uma descrição minuciosa na qual propõe um olhar introspectivo sobre a cultura popular medieval.

Bakhtin inicia fazendo apologia a François Rabelais, citando outros autores da crítica literária ocidental que o qualificam de gênio e profeta. Coloca-o no panteão dos escritores, junto a Shakespeare e Cervantes. E atribui essa importância singular ao fato de Rabelais ter buscado as fontes para sua obra na cultura popular de sua época.

O crítico russo identifica como principal mérito de Rabelais o caráter genuinamente popular de sua obra. Para ele, essa cultura popular, registrada em peças e personagens como Gargântua e Pantagruel, difere de todos os cânones estabelecidos na Antigüidade e restaurados no Renascimento. Tais regras teriam sido impostas e estranhas à visão de mundo das classes populares, contendo valores que, embora fundamentalmente diferentes, conviviam e dialogavam com a cultura do povo. Por isso, Bakhtin defende que a única forma de realmente compreender Rabelais e decifrar as “imagens enigmáticas” codificadas na sua obra é voltando às “fontes populares” nas quais ela estaria baseada.

As imagens de Rabelais estão perfeitamente posicionadas dentro da evolução milenar da cultura popular e, se por um lado ele é o mais difícil dos autores clássicos, por outro sua obra permite analisar a cultura cômica popular de vários milênios [2].

Os românticos, pós-iluministas, são criticados por terem “reduzido” o popular a uma dimensão do folclore, intocada, estática, dissociada da realidade dinâmica das classes populares. Eles teriam excluído o caráter público e aberto da cultura popular e desdenhado do riso, do bom humor e do escárnio como aspectos relevantes em seu estudo. Bakhtin considera que é desta comicidade que o popular é feito e que a sua expressão em praça pública, em diálogo permanente com as culturas em volta, é o aspecto-chave que abre a porta de sua compreensão. Toda a incompletude, a sátira e a dinâmica da genuína cultura popular são o que ele chama de “grotesco”, característica que se opunha à seriedade e formalidade da ordem feudal e clerical.


Ato I – As formas dos ritos e espetáculos

“A cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo” [6]

Esta máxima, de um dos trabalhos do antropólogo Roque de Barros Laraia, interage com a interpretação da cultura cômica popular, pois a identificação e até a total compreensão dependem do meio cultural do indivíduo.

Bakhtin divide as manifestações da cultura popular medieval em três categorias fundamentais: Ritos e Espetáculos (carnaval, festa dos tolos, teatro cômico em praça pública), Obras Cômicas Verbais (em versos, peças, trovas...) e Diversas Formas e Gêneros do Vocabulário Familiar e Grosseiro (insultos e ofensas, gírias/blasões populares).

Do primeiro tipo, Bakhtin lista: o Carnaval, a Festa dos Tolos, o Risco Pascal, a Festa do Asno, as Festas do Templo, a Vindima e as Soties. Nesses ritos públicos, eram parodiados a liturgia e o cerimonial das classes dominantes (Igreja e Nobreza). Havia, por exemplo, a eleição de “reis” dos foliões, geralmente avaliados por sua face mais horrenda ou grotesca. Por isso, o carnaval não é considerado um espetáculo de arte, e sim uma forma de viver a realidade, ainda que provisória. Os bufões tomavam o lugar das autoridades eclesiásticas ou aristocráticas e, por algumas horas ou alguns dias, a ordem repressora era subvertida e dava lugar à paródia, para que logo em seguida tudo voltasse ao status quo anterior. Essa capacidade de conviver normalmente com os dois tipos de ordem, e aceitar sua superposição, era o que Bakhtin identificou como a dualidade da visão-de-mundo que se tinha na cultura da Idade Média.

O carnaval como exemplo de manifestação através de rito e espetáculo também se utiliza do grotesco para desmistificar, desestruturar, ainda que por alguns dias, as formas pré-concebidas de se entender o mundo. Ele cria a oportunidade de o indivíduo mais desvalorizado dentro de um círculo social sentir-se agente de modificação da realidade, passando da posição de espectador para a de ator do espetáculo.

"O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três dias, transpõe para o mundo da "rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são a contrapartida das paradas. A negação que o carnaval faz das estruturas de poder e autoridade é corporificada no malandro. O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar a estrutura do poder e a ela se sobrepor - e, nesse processo, terminar por ser reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o malandro dos carnavais, outro personagem - o místico renunciador - sai das procissões. Ele rejeita o sistema como um todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e seus próprios valores." [3]

Assim como existem ritos que libertam as pessoas, há aqueles, chamados de oficiais, que servem para reforçar e manter o regime em vigor, como os ritos da Igreja e do Estado feudal na Idade Média. E os ritos que inicialmente eram repudiados pelas classes dominantes (carnaval, capoeira, funk carioca, samba etc, como exemplo de ritos brasileiros contemporâneos) são aglutinados em verdadeiros movimentos “antropofágicos culturais”, tornando-os intrínsecos e “naturais” da própria sociedade.

Em nosso país, alguns desses movimentos antropofágicos podem ser interpretados como o “jeitinho brasileiro” [4], no lado bom da “malandragem”, encontrando soluções simples e baratas para grandes problemas, como também incorporam ritos de outras regiões misturando e os transformando em algo totalmente diferente e fora do contexto.


Ato II - Obras Cômicas Verbais

As celebrações carnavalescas ocupavam lugar importante na vida dos povos medievais. Nas grandes cidades, chegavam a durar três meses por ano. As obras verbais utilizavam amplamente a linguagem das formas carnavalescas e desenvolviam-se ao abrigo das ousadias legitimadas pelo carnaval.

Entre estas obras, Bakhtin enquadra a literatura cômica da Idade Média “imbuída da concepção carnavalesca do mundo”, produzida não para instrução ou contemplação, mas para festejo e recreação. Eram feitas paródias sobre episódios bíblicos ou sobre tratados de ciência e filosofia (Vergilius Maro grammaticus, paródia de gramática latina), e ainda a parodia sacra, sobre os textos da liturgia da Igreja. Também eram satirizados os documentos da lei civil, como no Testamento do Porco e no Testamento do Burro. Assim como no carnaval, Igreja e Estado eram vítimas do próprio escárnio que combatiam na opressão cotidiana. Havia ainda, em língua vulgar, as sátiras às narrativas heróicas, comuns nas trovas medievais, substituindo os cavaleiros pios por bufões, bobos e animais. Nessas novas narrativas, e principalmente nas peças teatrais, eram usados os mesmos símbolos do carnaval.

As paródias sacra, feita pelos próprios sacerdotes, na idade medieval, desmistificava a igreja e dividia espaço com a literatura cômica em literatura vulgar, igualmente rica e mais diversificada.
O uso da facécia, um importante instrumento da retórica em Aristóteles [1], visa desestruturar e até ridicularizar pensamentos pré-definidos. Esta forma de apresentar os fatos e registrar acontecimentos ainda se mantém muito presente na Literatura de Cordel, onde o foco das histórias são os acontecimentos populares tratados de maneira cômica e por vezes mística.


Ato III - Diversas Formas e G êneros do Vocabulário Familiar e Grosseiro

E, finalmente, na terceira categoria, Bakhtin trata da fala cotidiana, particularmente da “linguagem familiar da praça pública”, do popular medieval. Basicamente, é uma linguagem que se orienta pela idéia de intimidade, mesmo em público, e mesmo lidando com pessoas de outra esfera social. A linguagem popular medieval “reduz as distâncias” e cria um modo de comunicação fraternal para tratar os iguais — por isso ao mesmo tempo “familiar” e “pública”. Este processo se dá na medida em que as palavras e gestos são transpostos para outra esfera de significado: por exemplo, injúria e xingamento não ofendem; pelo contrário, denotam amizade e intimidade suficiente para permitir-lhes. No vocabulário, as grosserias, blasfêmias, juramentos (tradução literal de swear?) são usados basicamente porque transgridem as regras de comunicação verbal formal da Igreja e do Estado. É o simples fato de ser proibido na esfera oficial que valoriza e autoriza o uso desse vocabulário proscrito.

É esse o elemento em comum às três categorias de manifestação da cultura popular medieval: a materialização de uma outra realidade, espontânea e livre de regras e proibições, que se objetasse à realidade das regras e condenações da Bíblia e da Lei. Essa “segunda vida” constituía uma alternativa real à “excepcional hierarquização do regime feudal” e era marcada pelo “poderoso elemento de jogo”, advindo da incerteza sobre o futuro, ou melhor, da ausência de uma preocupação sobre o futuro, num tempo em que a idéia de progresso contínuo e inevitável ainda não se havia implantado. Bakhtin diz que “as festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo”, pois eram fundamentadas em outras marcações que não as da colheita, do trabalho, dos impostos. Essas festas eram vividas em função não dos meios materiais, mas dos ideais da existência. Elas transportam para outra dimensão de realidade, vivendo um momento de morte e renovação (por isso eram comuns em épocas de crise). E, do outro lado, as cerimônias e liturgias oficiais, além de não realizar esse “transporte”, ainda serviam para confirmar a ordem estabelecida. Bakhtin atribui a condenação da comicidade ao advento do Estado, necessariamente opressor.

Em seguida, o crítico literário russo critica as interpretações de outros autores sobre o caráter do corpo e da vida material na obra de Rabelais como “exaltações à carne”, “fisiologismo grosseiro”, “naturalismo” ou mesmo individualismo burguês. Para ele, essas concepções são feitas de acordo com pontos-de-vista só estabelecidos muito depois (no século XIX, na modernidade) e por isso não dão conta de explicar o real significado dessas imagens. À luz do contexto da época, o corpo em Rabelais deve ser encarado como herança de “uma concepção estética da vida prática”, que ele chama de realismo grotesco.

Como fundamento dessa visão, está a ausência de distinção absoluta entre o corpo e o cosmos (a natureza). A idéia de corpo está materializada não como “ser biológico isolado” nem como o conceito (iluminista) de indivíduo, e sim como povo. Ou seja, um corpo disforme, em constante renovação e crescimento, caracterizado por alta fertilidade e superabundância, coletivo, genérico, espontâneo, perto daquilo que hoje chamamos de “massa”.

O realismo grotesco se caracteriza por “rebaixar” os ideais da “alta cultura” (de origem clássica, elitista) ao plano terreno e corporal. Valoriza o “baixo corporal”, os pontos nos quais o corpo se abre ou se liga ao mundo em volta dele: “orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” e os atos a eles relacionados (fornicar, parir, comer, beber, excretar). Os conceitos de “alto” e “baixo” referem-se tanto à esfera abstrata quanto concreta, das oposições céu/terra e idéia/matéria, sempre mantendo os mesmos sentidos: o alto, ao nível puro e ideal, e o baixo, ao nível misturado e material.

Bakhtin coloca como propriedade intrínseca desse realismo grotesco a ambivalência regeneradora, ou seja, a capacidade de destruir e reconstruir na mesma ação. Isso é feito, por exemplo, nas paródias que escarnecem e louvam na mesma medida, nas manifestações culturais que têm o poder de degradar e elogiar simultaneamente. Pelo mesmo motivo, as imagens de túmulo e ventre materno, de decomposição e nascimento, de excreção e coito, são símbolos constantes desse grotesco. É sempre um corpo em transformação, metamorfose incompleta, morrendo e nascendo. “A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca”, diz.

Para Bahktin, o realismo grotesco deixou marcas profundas nos séculos posteriores, inclusive no Realismo Renascentista — apesar de este basear-se fundamentalmente nos cânones clássicos, há “destroços” do grotesco, como ele chama. Ele compara os valores estéticos de antes e depois da Idade Média (ou seja, da Antigüidade Clássica, do Renascimento e da Modernidade) aos próprios do popular medieval. Cita, por exemplo, a idade ideal clássica como sendo o meio-termo mais distante possível dos extremos do nascimento e da morte, enquanto o grotesco a quer o mais próximo de uma (ou de ambas) destas pontas. Há representações que apontam para os dois lados: a velha grávida, “a morte que dá à luz”.

Finalmente, é esta idéia geral de incompletude e mescla, que mistura o corpo à natureza, a morte ao nascimento, a opressão à subversão, o alto ao baixo, o túmulo ao útero, a reverência ao insulto, que orienta toda a produção estética popular do período, não apenas na literatura (Bakhtin cita o pintor holandês Hyeronymous Bosch, célebre por seus quadros de orgias e visões do inferno). Ele diz textualmente: “A cultura medieval popular conhecia apenas essa concepção”, e as separações/categorizações dogmáticas da Igreja e do Estado eram estranhas a ela.

Estilos canônicos bem demarcados caracterizaram as décadas e séculos passados. Mais que isso, duravam períodos mais longos, que vêm se reduzindo. O Egito passou três milênios com os mesmos valores estéticos; o Barroco durou século e meio e o Dadaísmo não chegou a três anos. Ao longo do século XX, falava-se numa aceleração crescente das renovações estéticas e na volatilidade cada vez mais ágil da moda. Eis que, nas últimas décadas do século passado, a aceleração chegou à velocidade da luz. Desfez-se a matéria, fragmentada em energia pura em partículas incontroláveis. Não há mais um estilo hegemônico, nem mesmo por seis meses. A hegemonia, se é que se pode chamar assim, já pertence à multiplicidade.


Epílogo - Popular Medieval e Pop Pós-Moderno: Semelhanças

O que mais chama a atenção é perceber que tais valores, que estavam presentes nessa cultura popular medieval, atravessaram a Modernidade sem serem desmantelados. Os valores estéticos (que Bakhtin chama de “cânones literários e plásticos”) da Antigüidade Clássica, restaurados no Renascimento e em boa parte hegemônicos até o século passado, formulavam concepções em quase tudo opostas. “Para eles, o corpo é acabado e perfeito”, separdo dos demais corpos e fechado. Dessa idéia de corpo retiram-se as ligações com o mundo exterior: “as excrescências e brotaduras”, “as protuberâncias”, “tapam-se os orifícios”, ou seja, elimina-se “tudo que leve a pensar que ele não está acabado”. Essa visão do “corpo” é extensível a todo conceito clássico e moderno, que da mesma formas propõe “verdades”, “ciências” e “ideologias” fechadas e acabadas.

Porém, estes mesmos valores não extinguiram aqueles seus contrários que se fizeram no popular da Idade Média — aquela “visão oposta a toda idéia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade” manifestada via “formas de expressão dinâmicas e mutáveis, flutuantes e ativas”. Continuou o gosto das coisas ao contrário, ao avesso, do mundo ao revés e, finalmente, “da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder”.

Ora, são precisamente valores que voltam à contemporaneidade hoje, dentro da chamada Pós-Modernidade. Os bens culturais produzidos por auto-denominados “pós-modernistas” se pautam pelas mesmas idéias. As narrativas do fim do século XX e deste início de XXI se caracterizam por inconstâncias, ambivalências e ludismos, assim como “as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação”. O mesmo relativismo das verdades vicia a produção científica, e volta à moda a contestação de cânones; fala-se no “fim da proibição”, assim como o do carnaval.

A maior diferença, provavelmente, é o fato de que, enquanto na Idade Média essa subversão anti-canônica tinha duração provisória e servia exatamente como diálogo (não negação absoluta) com o cânone/a lei/a doutrina, ela hoje é vendida como caráter permanente da nova condição social. Se o bufão medieval sabia que seu reinado carnavalesco acabaria na quarta-feira de cinzas, o cidadão pós-industrial está convidado a se acostumar à inconstância.

A descrição do carnaval medieval “sem cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem os atributos específicos de todo espetáculo teatral” já antecipa o que nas últimas décadas tem-se chamado “crise da representação”, ou certa tendência a simplesmente não representar, em lugar de forjar realidades fictícias.

A estética do teatro ao longo do século XX não foi caminhando justamente dos cenários suntuosos das grandes casas parisienses e milanesas até os palcos vazios de Pirandello?

Ou, no cinema, da “Viagem à Lua” de Meliès a “Dogville” de Von Trier?
Nas palavras de Bakhtin, a visão-guia por trás da cultura popular medieval é “oposta a toda idéia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade”, bem como “a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação”. Para a Bakhtin, a estética popular medieval “encontra-se evidentemente em contradição formal com os cânones literários e plásticos da Antigüidade clássica” [2, pp. 25] e, mais ainda, “sua própria natureza é anticanônica” [2, pp. 27]. Estes mesmos cânones foram restaurados no Renascimento e no auge do Iluminismo, além dos surtos totalitários do século XX, e acabaram desmoralizados e desdenhados pelas vanguardas modernistas e suas sucessoras mais recentes. No final das contas, dentro do panorama estético contemporâneo, o que a cultura clássica levou milênios para consolidar como valores estéticos — o “ideal”, o “perfeito”, o “eterno” — ficou confinado à Alta Cultura e, a partir de determinada fase, relegado até mesmo à condição de kitsch.

Tal descrição é notavelmente similar à de Jameson (1991) [5] sobre as propriedades da cultura pós-moderna. O próprio caráter múltiplo, policrômico, hipertrofiado de imagens, é um dos valores mais perceptíveis da estética do pós-moderno. O que é, afinal, a “estética videoclipe”, da colagem piscada e superacelerada de imagens diversas passando em frente aos nossos olhos, senão a expressão mais pura disso?

Na cultura da Pós-Modernidade, nada é mais classificado e o advérbio “puramente” entrou em desuso. O vício do relativismo impregna todas as interpretações antes orientadas por dogmas e doutrinas. Desterritorialização, estratificação e rizoma são imagens recorrentes nas novas visões de mundo.

Bakhtin diz que as representações do princípio material e corporal em Rabelais são herança de “um tipo peculiar de imagens” e de “uma concepção estética da vida prática”. Na Pós-Modernidade, no entanto, já não se quer mais fazer uma imagem nova; quer-se a colagem de imagens. Os videoclipes do New Order, as montagens de Andy Warhol e a música remixada de Fatboy Slim e outros DJs atendem a essa proposta.
Não por acaso, inúmeras propriedades da cultura pós-moderna exigem a interpretação bakhtiniana do dialogismo e da polifonia para serem decodificadas. Com a chamada “crise das metanarrativas”, tornaram-se deslegitimadas as representações de referência direta — de forma e de conteúdo — a ícones do imaginário coletivo, mitos fundadores e outros tradicionais elementos identificadores da coletividade. O que se preza, hoje, é a referência multicultural, camuflada, invertida e fragmentada, avessa a classificações de gênero e estilísticas. Um diálogo permanente e polifônico conecta as diferentes manifestações culturais contemporâneas.

E o pensador mais complacente argumentaria ainda que, hoje, graças à proclamada “diversidade” do pós-moderno, a tolerância ao diferente é plenamente permitida. Ou seja, a tal estética atual já abre caminhos para contestações a ela própria — o mesmo recurso fagocitótico da cultura de massa. E, no entanto, é inegável que para a massa existe um conjunto razoavelmente homogêneo de valores, contra os quais os “rebeldes” que se insurgem são execrados, alijados ou ridicularizados. Em resumo, a diversidade mantém a dominação do mainstream.

Se os valores resgatados hoje pela Pós-Modernidade já existiam na Cultura Popular Medieval, isso significa que tudo que temos hoje é a disseminação genuína da cultura popular — instável, fragmentada, jocosa, cômica, paródica, entrópica — institucionalizada via indústria cultural? Neste caso, a hipótese frankfurtiana de deterioração da “Alta Cultura” pela produção cultural massificada ganharia, senão força, ao menos legitimidade.

A “opressão cultural” das elites seria uma forma de salvaguarda contra a apropriação demagógica da cultura popular pelas forças detentoras dos meios de produção.
Terá sido a máquina da indústria cultural que se apropriou da cultura genuinamente popular da Idade Média e devolveu-a às massas da contemporaneidade embaladas em plásticos de CDs, DVDs e brochuras?

Referências Bibliográficas:

[1] ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
[2] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular da Idade Média e o Renascimento: O contexto de François Rabelais. Edunb, 2ª Edição,São Paulo-Brasília, 1993.
[3] DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
[4] DA MATTA, Roberto. O Que Faz o Brasil, Brasil? . Rio de Janeiro: Rocco.
[5] JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 2002.
[6] LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

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