Cultura Popular segundo Bakhtin e Cultura da Pós-Modernidade
Por Pedro Aguiar e Rafael Vargas
Prólogo
Quem já assistiu a um enterro em Nova Orleans, Louisiana, experimentou a dualidade de sentimentos expressa por uma banda de jazz que durante o cortejo toca músicas melancólicas e, em seguida, sai do cemitério fazendo festa com músicas eufóricas.
Esta cena pode provocar espanto, repúdio ou até indignação por indivíduos de outras culturas, mas essa expressão cultural é uma manifestação legítima da cultura cômica popular.
Na introdução de seu livro “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, o crítico literário russo Mikhail Bakhtin faz uma descrição minuciosa na qual propõe um olhar introspectivo sobre a cultura popular medieval.
Bakhtin inicia fazendo apologia a François Rabelais, citando outros autores da crítica literária ocidental que o qualificam de gênio e profeta. Coloca-o no panteão dos escritores, junto a Shakespeare e Cervantes. E atribui essa importância singular ao fato de Rabelais ter buscado as fontes para sua obra na cultura popular de sua época.
O crítico russo identifica como principal mérito de Rabelais o caráter genuinamente popular de sua obra. Para ele, essa cultura popular, registrada em peças e personagens como Gargântua e Pantagruel, difere de todos os cânones estabelecidos na Antigüidade e restaurados no Renascimento. Tais regras teriam sido impostas e estranhas à visão de mundo das classes populares, contendo valores que, embora fundamentalmente diferentes, conviviam e dialogavam com a cultura do povo. Por isso, Bakhtin defende que a única forma de realmente compreender Rabelais e decifrar as “imagens enigmáticas” codificadas na sua obra é voltando às “fontes populares” nas quais ela estaria baseada.
As imagens de Rabelais estão perfeitamente posicionadas dentro da evolução milenar da cultura popular e, se por um lado ele é o mais difícil dos autores clássicos, por outro sua obra permite analisar a cultura cômica popular de vários milênios [2].
Os românticos, pós-iluministas, são criticados por terem “reduzido” o popular a uma dimensão do folclore, intocada, estática, dissociada da realidade dinâmica das classes populares. Eles teriam excluído o caráter público e aberto da cultura popular e desdenhado do riso, do bom humor e do escárnio como aspectos relevantes em seu estudo. Bakhtin considera que é desta comicidade que o popular é feito e que a sua expressão em praça pública, em diálogo permanente com as culturas em volta, é o aspecto-chave que abre a porta de sua compreensão. Toda a incompletude, a sátira e a dinâmica da genuína cultura popular são o que ele chama de “grotesco”, característica que se opunha à seriedade e formalidade da ordem feudal e clerical.
Ato I – As formas dos ritos e espetáculos
“A cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo” [6]
Esta máxima, de um dos trabalhos do antropólogo Roque de Barros Laraia, interage com a interpretação da cultura cômica popular, pois a identificação e até a total compreensão dependem do meio cultural do indivíduo.
Bakhtin divide as manifestações da cultura popular medieval em três categorias fundamentais: Ritos e Espetáculos (carnaval, festa dos tolos, teatro cômico em praça pública), Obras Cômicas Verbais (em versos, peças, trovas...) e Diversas Formas e Gêneros do Vocabulário Familiar e Grosseiro (insultos e ofensas, gírias/blasões populares).
Do primeiro tipo, Bakhtin lista: o Carnaval, a Festa dos Tolos, o Risco Pascal, a Festa do Asno, as Festas do Templo, a Vindima e as Soties. Nesses ritos públicos, eram parodiados a liturgia e o cerimonial das classes dominantes (Igreja e Nobreza). Havia, por exemplo, a eleição de “reis” dos foliões, geralmente avaliados por sua face mais horrenda ou grotesca. Por isso, o carnaval não é considerado um espetáculo de arte, e sim uma forma de viver a realidade, ainda que provisória. Os bufões tomavam o lugar das autoridades eclesiásticas ou aristocráticas e, por algumas horas ou alguns dias, a ordem repressora era subvertida e dava lugar à paródia, para que logo em seguida tudo voltasse ao status quo anterior. Essa capacidade de conviver normalmente com os dois tipos de ordem, e aceitar sua superposição, era o que Bakhtin identificou como a dualidade da visão-de-mundo que se tinha na cultura da Idade Média.
O carnaval como exemplo de manifestação através de rito e espetáculo também se utiliza do grotesco para desmistificar, desestruturar, ainda que por alguns dias, as formas pré-concebidas de se entender o mundo. Ele cria a oportunidade de o indivíduo mais desvalorizado dentro de um círculo social sentir-se agente de modificação da realidade, passando da posição de espectador para a de ator do espetáculo.
"O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três dias, transpõe para o mundo da "rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são a contrapartida das paradas. A negação que o carnaval faz das estruturas de poder e autoridade é corporificada no malandro. O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar a estrutura do poder e a ela se sobrepor - e, nesse processo, terminar por ser reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o malandro dos carnavais, outro personagem - o místico renunciador - sai das procissões. Ele rejeita o sistema como um todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e seus próprios valores." [3]
Assim como existem ritos que libertam as pessoas, há aqueles, chamados de oficiais, que servem para reforçar e manter o regime em vigor, como os ritos da Igreja e do Estado feudal na Idade Média. E os ritos que inicialmente eram repudiados pelas classes dominantes (carnaval, capoeira, funk carioca, samba etc, como exemplo de ritos brasileiros contemporâneos) são aglutinados em verdadeiros movimentos “antropofágicos culturais”, tornando-os intrínsecos e “naturais” da própria sociedade.
Em nosso país, alguns desses movimentos antropofágicos podem ser interpretados como o “jeitinho brasileiro” [4], no lado bom da “malandragem”, encontrando soluções simples e baratas para grandes problemas, como também incorporam ritos de outras regiões misturando e os transformando em algo totalmente diferente e fora do contexto.
Ato II - Obras Cômicas Verbais
As celebrações carnavalescas ocupavam lugar importante na vida dos povos medievais. Nas grandes cidades, chegavam a durar três meses por ano. As obras verbais utilizavam amplamente a linguagem das formas carnavalescas e desenvolviam-se ao abrigo das ousadias legitimadas pelo carnaval.
Entre estas obras, Bakhtin enquadra a literatura cômica da Idade Média “imbuída da concepção carnavalesca do mundo”, produzida não para instrução ou contemplação, mas para festejo e recreação. Eram feitas paródias sobre episódios bíblicos ou sobre tratados de ciência e filosofia (Vergilius Maro grammaticus, paródia de gramática latina), e ainda a parodia sacra, sobre os textos da liturgia da Igreja. Também eram satirizados os documentos da lei civil, como no Testamento do Porco e no Testamento do Burro. Assim como no carnaval, Igreja e Estado eram vítimas do próprio escárnio que combatiam na opressão cotidiana. Havia ainda, em língua vulgar, as sátiras às narrativas heróicas, comuns nas trovas medievais, substituindo os cavaleiros pios por bufões, bobos e animais. Nessas novas narrativas, e principalmente nas peças teatrais, eram usados os mesmos símbolos do carnaval.
As paródias sacra, feita pelos próprios sacerdotes, na idade medieval, desmistificava a igreja e dividia espaço com a literatura cômica em literatura vulgar, igualmente rica e mais diversificada.
O uso da facécia, um importante instrumento da retórica em Aristóteles [1], visa desestruturar e até ridicularizar pensamentos pré-definidos. Esta forma de apresentar os fatos e registrar acontecimentos ainda se mantém muito presente na Literatura de Cordel, onde o foco das histórias são os acontecimentos populares tratados de maneira cômica e por vezes mística.
Ato III - Diversas Formas e G êneros do Vocabulário Familiar e Grosseiro
E, finalmente, na terceira categoria, Bakhtin trata da fala cotidiana, particularmente da “linguagem familiar da praça pública”, do popular medieval. Basicamente, é uma linguagem que se orienta pela idéia de intimidade, mesmo em público, e mesmo lidando com pessoas de outra esfera social. A linguagem popular medieval “reduz as distâncias” e cria um modo de comunicação fraternal para tratar os iguais — por isso ao mesmo tempo “familiar” e “pública”. Este processo se dá na medida em que as palavras e gestos são transpostos para outra esfera de significado: por exemplo, injúria e xingamento não ofendem; pelo contrário, denotam amizade e intimidade suficiente para permitir-lhes. No vocabulário, as grosserias, blasfêmias, juramentos (tradução literal de swear?) são usados basicamente porque transgridem as regras de comunicação verbal formal da Igreja e do Estado. É o simples fato de ser proibido na esfera oficial que valoriza e autoriza o uso desse vocabulário proscrito.
É esse o elemento em comum às três categorias de manifestação da cultura popular medieval: a materialização de uma outra realidade, espontânea e livre de regras e proibições, que se objetasse à realidade das regras e condenações da Bíblia e da Lei. Essa “segunda vida” constituía uma alternativa real à “excepcional hierarquização do regime feudal” e era marcada pelo “poderoso elemento de jogo”, advindo da incerteza sobre o futuro, ou melhor, da ausência de uma preocupação sobre o futuro, num tempo em que a idéia de progresso contínuo e inevitável ainda não se havia implantado. Bakhtin diz que “as festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo”, pois eram fundamentadas em outras marcações que não as da colheita, do trabalho, dos impostos. Essas festas eram vividas em função não dos meios materiais, mas dos ideais da existência. Elas transportam para outra dimensão de realidade, vivendo um momento de morte e renovação (por isso eram comuns em épocas de crise). E, do outro lado, as cerimônias e liturgias oficiais, além de não realizar esse “transporte”, ainda serviam para confirmar a ordem estabelecida. Bakhtin atribui a condenação da comicidade ao advento do Estado, necessariamente opressor.
Em seguida, o crítico literário russo critica as interpretações de outros autores sobre o caráter do corpo e da vida material na obra de Rabelais como “exaltações à carne”, “fisiologismo grosseiro”, “naturalismo” ou mesmo individualismo burguês. Para ele, essas concepções são feitas de acordo com pontos-de-vista só estabelecidos muito depois (no século XIX, na modernidade) e por isso não dão conta de explicar o real significado dessas imagens. À luz do contexto da época, o corpo em Rabelais deve ser encarado como herança de “uma concepção estética da vida prática”, que ele chama de realismo grotesco.
Como fundamento dessa visão, está a ausência de distinção absoluta entre o corpo e o cosmos (a natureza). A idéia de corpo está materializada não como “ser biológico isolado” nem como o conceito (iluminista) de indivíduo, e sim como povo. Ou seja, um corpo disforme, em constante renovação e crescimento, caracterizado por alta fertilidade e superabundância, coletivo, genérico, espontâneo, perto daquilo que hoje chamamos de “massa”.
O realismo grotesco se caracteriza por “rebaixar” os ideais da “alta cultura” (de origem clássica, elitista) ao plano terreno e corporal. Valoriza o “baixo corporal”, os pontos nos quais o corpo se abre ou se liga ao mundo em volta dele: “orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” e os atos a eles relacionados (fornicar, parir, comer, beber, excretar). Os conceitos de “alto” e “baixo” referem-se tanto à esfera abstrata quanto concreta, das oposições céu/terra e idéia/matéria, sempre mantendo os mesmos sentidos: o alto, ao nível puro e ideal, e o baixo, ao nível misturado e material.
Bakhtin coloca como propriedade intrínseca desse realismo grotesco a ambivalência regeneradora, ou seja, a capacidade de destruir e reconstruir na mesma ação. Isso é feito, por exemplo, nas paródias que escarnecem e louvam na mesma medida, nas manifestações culturais que têm o poder de degradar e elogiar simultaneamente. Pelo mesmo motivo, as imagens de túmulo e ventre materno, de decomposição e nascimento, de excreção e coito, são símbolos constantes desse grotesco. É sempre um corpo em transformação, metamorfose incompleta, morrendo e nascendo. “A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca”, diz.
Para Bahktin, o realismo grotesco deixou marcas profundas nos séculos posteriores, inclusive no Realismo Renascentista — apesar de este basear-se fundamentalmente nos cânones clássicos, há “destroços” do grotesco, como ele chama. Ele compara os valores estéticos de antes e depois da Idade Média (ou seja, da Antigüidade Clássica, do Renascimento e da Modernidade) aos próprios do popular medieval. Cita, por exemplo, a idade ideal clássica como sendo o meio-termo mais distante possível dos extremos do nascimento e da morte, enquanto o grotesco a quer o mais próximo de uma (ou de ambas) destas pontas. Há representações que apontam para os dois lados: a velha grávida, “a morte que dá à luz”.
Finalmente, é esta idéia geral de incompletude e mescla, que mistura o corpo à natureza, a morte ao nascimento, a opressão à subversão, o alto ao baixo, o túmulo ao útero, a reverência ao insulto, que orienta toda a produção estética popular do período, não apenas na literatura (Bakhtin cita o pintor holandês Hyeronymous Bosch, célebre por seus quadros de orgias e visões do inferno). Ele diz textualmente: “A cultura medieval popular conhecia apenas essa concepção”, e as separações/categorizações dogmáticas da Igreja e do Estado eram estranhas a ela.
Estilos canônicos bem demarcados caracterizaram as décadas e séculos passados. Mais que isso, duravam períodos mais longos, que vêm se reduzindo. O Egito passou três milênios com os mesmos valores estéticos; o Barroco durou século e meio e o Dadaísmo não chegou a três anos. Ao longo do século XX, falava-se numa aceleração crescente das renovações estéticas e na volatilidade cada vez mais ágil da moda. Eis que, nas últimas décadas do século passado, a aceleração chegou à velocidade da luz. Desfez-se a matéria, fragmentada em energia pura em partículas incontroláveis. Não há mais um estilo hegemônico, nem mesmo por seis meses. A hegemonia, se é que se pode chamar assim, já pertence à multiplicidade.
Epílogo - Popular Medieval e Pop Pós-Moderno: Semelhanças
O que mais chama a atenção é perceber que tais valores, que estavam presentes nessa cultura popular medieval, atravessaram a Modernidade sem serem desmantelados. Os valores estéticos (que Bakhtin chama de “cânones literários e plásticos”) da Antigüidade Clássica, restaurados no Renascimento e em boa parte hegemônicos até o século passado, formulavam concepções em quase tudo opostas. “Para eles, o corpo é acabado e perfeito”, separdo dos demais corpos e fechado. Dessa idéia de corpo retiram-se as ligações com o mundo exterior: “as excrescências e brotaduras”, “as protuberâncias”, “tapam-se os orifícios”, ou seja, elimina-se “tudo que leve a pensar que ele não está acabado”. Essa visão do “corpo” é extensível a todo conceito clássico e moderno, que da mesma formas propõe “verdades”, “ciências” e “ideologias” fechadas e acabadas.
Porém, estes mesmos valores não extinguiram aqueles seus contrários que se fizeram no popular da Idade Média — aquela “visão oposta a toda idéia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade” manifestada via “formas de expressão dinâmicas e mutáveis, flutuantes e ativas”. Continuou o gosto das coisas ao contrário, ao avesso, do mundo ao revés e, finalmente, “da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder”.
Ora, são precisamente valores que voltam à contemporaneidade hoje, dentro da chamada Pós-Modernidade. Os bens culturais produzidos por auto-denominados “pós-modernistas” se pautam pelas mesmas idéias. As narrativas do fim do século XX e deste início de XXI se caracterizam por inconstâncias, ambivalências e ludismos, assim como “as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação”. O mesmo relativismo das verdades vicia a produção científica, e volta à moda a contestação de cânones; fala-se no “fim da proibição”, assim como o do carnaval.
A maior diferença, provavelmente, é o fato de que, enquanto na Idade Média essa subversão anti-canônica tinha duração provisória e servia exatamente como diálogo (não negação absoluta) com o cânone/a lei/a doutrina, ela hoje é vendida como caráter permanente da nova condição social. Se o bufão medieval sabia que seu reinado carnavalesco acabaria na quarta-feira de cinzas, o cidadão pós-industrial está convidado a se acostumar à inconstância.
A descrição do carnaval medieval “sem cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem os atributos específicos de todo espetáculo teatral” já antecipa o que nas últimas décadas tem-se chamado “crise da representação”, ou certa tendência a simplesmente não representar, em lugar de forjar realidades fictícias.
A estética do teatro ao longo do século XX não foi caminhando justamente dos cenários suntuosos das grandes casas parisienses e milanesas até os palcos vazios de Pirandello?
Ou, no cinema, da “Viagem à Lua” de Meliès a “Dogville” de Von Trier?
Nas palavras de Bakhtin, a visão-guia por trás da cultura popular medieval é “oposta a toda idéia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade”, bem como “a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação”. Para a Bakhtin, a estética popular medieval “encontra-se evidentemente em contradição formal com os cânones literários e plásticos da Antigüidade clássica” [2, pp. 25] e, mais ainda, “sua própria natureza é anticanônica” [2, pp. 27]. Estes mesmos cânones foram restaurados no Renascimento e no auge do Iluminismo, além dos surtos totalitários do século XX, e acabaram desmoralizados e desdenhados pelas vanguardas modernistas e suas sucessoras mais recentes. No final das contas, dentro do panorama estético contemporâneo, o que a cultura clássica levou milênios para consolidar como valores estéticos — o “ideal”, o “perfeito”, o “eterno” — ficou confinado à Alta Cultura e, a partir de determinada fase, relegado até mesmo à condição de kitsch.
Tal descrição é notavelmente similar à de Jameson (1991) [5] sobre as propriedades da cultura pós-moderna. O próprio caráter múltiplo, policrômico, hipertrofiado de imagens, é um dos valores mais perceptíveis da estética do pós-moderno. O que é, afinal, a “estética videoclipe”, da colagem piscada e superacelerada de imagens diversas passando em frente aos nossos olhos, senão a expressão mais pura disso?
Na cultura da Pós-Modernidade, nada é mais classificado e o advérbio “puramente” entrou em desuso. O vício do relativismo impregna todas as interpretações antes orientadas por dogmas e doutrinas. Desterritorialização, estratificação e rizoma são imagens recorrentes nas novas visões de mundo.
Bakhtin diz que as representações do princípio material e corporal em Rabelais são herança de “um tipo peculiar de imagens” e de “uma concepção estética da vida prática”. Na Pós-Modernidade, no entanto, já não se quer mais fazer uma imagem nova; quer-se a colagem de imagens. Os videoclipes do New Order, as montagens de Andy Warhol e a música remixada de Fatboy Slim e outros DJs atendem a essa proposta.
Não por acaso, inúmeras propriedades da cultura pós-moderna exigem a interpretação bakhtiniana do dialogismo e da polifonia para serem decodificadas. Com a chamada “crise das metanarrativas”, tornaram-se deslegitimadas as representações de referência direta — de forma e de conteúdo — a ícones do imaginário coletivo, mitos fundadores e outros tradicionais elementos identificadores da coletividade. O que se preza, hoje, é a referência multicultural, camuflada, invertida e fragmentada, avessa a classificações de gênero e estilísticas. Um diálogo permanente e polifônico conecta as diferentes manifestações culturais contemporâneas.
E o pensador mais complacente argumentaria ainda que, hoje, graças à proclamada “diversidade” do pós-moderno, a tolerância ao diferente é plenamente permitida. Ou seja, a tal estética atual já abre caminhos para contestações a ela própria — o mesmo recurso fagocitótico da cultura de massa. E, no entanto, é inegável que para a massa existe um conjunto razoavelmente homogêneo de valores, contra os quais os “rebeldes” que se insurgem são execrados, alijados ou ridicularizados. Em resumo, a diversidade mantém a dominação do mainstream.
Se os valores resgatados hoje pela Pós-Modernidade já existiam na Cultura Popular Medieval, isso significa que tudo que temos hoje é a disseminação genuína da cultura popular — instável, fragmentada, jocosa, cômica, paródica, entrópica — institucionalizada via indústria cultural? Neste caso, a hipótese frankfurtiana de deterioração da “Alta Cultura” pela produção cultural massificada ganharia, senão força, ao menos legitimidade.
A “opressão cultural” das elites seria uma forma de salvaguarda contra a apropriação demagógica da cultura popular pelas forças detentoras dos meios de produção.
Terá sido a máquina da indústria cultural que se apropriou da cultura genuinamente popular da Idade Média e devolveu-a às massas da contemporaneidade embaladas em plásticos de CDs, DVDs e brochuras?
Referências Bibliográficas:
[1] ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
[2] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular da Idade Média e o Renascimento: O contexto de François Rabelais. Edunb, 2ª Edição,São Paulo-Brasília, 1993.
[3] DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
[4] DA MATTA, Roberto. O Que Faz o Brasil, Brasil? . Rio de Janeiro: Rocco.
[5] JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 2002.
[6] LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.