Discurso, Mídia e Sexualidade :: 2006/1

Prof. Dr. Paulo César Castro de Sousa

A partir da observação e estudo de diversos produtos culturais criados por eventos comunicacionais (tais como textos jornalísticos, discursos políticos, programas televisivos e de rádio, anúncios publicitários, etc.), a análise de discursos procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade. Ela, portanto, instaura um novo objeto de conhecimento: o discurso. Leia mais.

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Coordenador: Diego Cotta
Participantes: Amanda Meirinho, Fábio Savino, Guilherme Tomaz, Maria Flor Brazil e Suriam dos Santos

Existem duas fortes tradições no campo da análise de discurso, a anglo-americana e a francesa. A tradição anglo-americana combina a descrição da estrutura e do funcionamento interno dos textos, com uma tentativa de contextualização: o indivíduo idealizador do discurso é pensado como alguém totalmente imune a qualquer coação social. Já a tradição francesa tenta articular lingüística e história. São muito influenciados pelas idéias de Althusser sobre produção / reprodução social e seus principais nomes são Michel Foucault e Michel Pêcheux. Em geral, é a visão mais estudada da análise de discursos, por definir os discursos como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico, mas que também são parte constitutivas daquele contexto.

É importante citar também os estudos de Norman Fairclough, que, em seus livros, articula um quadro tridimensional para o estudo do discurso, “onde o propósito é mapear três formas separadas de análise em uma só: análise de textos (falados ou escritos), análise da prática discursiva (processos de produção, distribuição e consumo dos textos) e análise dos eventos discursivos como instâncias da prática sociocultural”. Portanto, o que temos são vias, diferentes possibilidades de compreensão de um problema posto diferentemente por cada autor. O que significa que não há uma "teoria" mais aceita atualmente, mas sim, caminhos teóricos que respondem e co-respondem em parte às necessidades de reflexão que se apresentam.

A proposta de um novo objeto chamado "discurso" surgiu com o filósofo francês Michel Pêcheux em sua tese "Analyse Automatique du Discours" em 1969. Nela, cria-se uma nova maneira de se encarar a linguagem humana, por se deslocar o ponto de partida da análise do produto pronto ou do processo interno de produção, segmentado ou não, para as condições de produção. Com isso, o objeto de estudo deixou de estar centrado na fala, na escrita ou no texto em si mesmos para recair nas condições, na situação, no momento de produção, invertendo a linha de raciocínio a respeito do processo de produção. A questão deixou de ser "o discurso existe independentemente do sujeito", como no Estruturalismo (Saussure) ou no Gerativismo (Chomsky), ou "determinado tipo de indivíduo produz determinado tipo de discurso", como na Sociolingüística, para ser "o porquê de determinado tipo de indivíduo produzir determinado tipo de discurso". A atenção passou do texto para o sujeito.

As teorias lingüísticas, de maneira geral, não dão maior atenção ao caráter individual do sujeito na produção da linguagem. As teorias formalistas geralmente vão tratá-lo como inexistente, ideal ou “assujeitado”. Em quase todos os casos, a individualidade do falante acaba sendo excluída dos estudos da linguagem, porém uma das exceções é a postura teórica de Mikhail Bakhtin, que consegue ver o sujeito como elemento participativo e atuante do processo comunicativo. Bakhtin critica as correntes lingüísticas mais destacadas, por estas não atribuírem um caráter mais social à linguagem. Ele argumenta que o processo de significação é resultado de uma ação social, o que implica em dizer que os signos são mutáveis. Logo, a sua existência estaria relacionada com um fazer social que não é constante ou imutável, mas sim um processo contínuo do qual toda a sociedade participa.

Cada sujeito, como parte da sociedade a que pertence, teria então o seu papel enquanto agente modificador na atividade social. Mesmo assumindo a idéia de que no discurso de um sujeito possam estar presentes outros discursos anteriores (conceito de polifonia, a seguir), a sua forma de analisar o processo de apropriação do discurso alheio pressupõe um sujeito ativo e atuante, capaz de fazer escolhas e estabelecer estratégias. Ele é responsável pelo uso que faz da linguagem. Não somente divulgador de um discurso preexistente, mas um agente dentro do processo discursivo, capaz de interferir, aprimorar ou até modificar o discurso social. Esta distinção é possível pelo fato de Bakhtin, ao contrário da análise do discurso francesa, conseguir ver o discurso na sua dimensão social. Dimensão esta que contém também as dimensões institucionais e as ultrapassa, sendo parte expressiva do conjunto de relações da atividade histórico-social.

O conceito de polifonia também é de fundamental importância. Na análise de discursos, todo texto é híbrido ou heterogêneo quanto à sua enunciação, no sentido de que ele é sempre um tecido de “vozes” ou citações vindas de outros textos preexistentes, contemporâneos ou do passado. Com isso, não se considera o postulado da unicidade do sujeito em que se dá ao autor a total responsabilidade pelo que está escrito. A polifonia é um fenômeno também identificado como heterogeneidade enunciativa, que pode ser manifestada de duas maneiras:

- heterogeneidade mostrada: Quando podemos perceber claramente a presença de outros textos através do uso de aspas, citações explícitas, etc.

- heterogeneidade constitutiva, ou interdiscurso: Quando podemos perceber o entrelaçamento do texto presente com outros, porém, sem nenhum vestígio explícito de citação ou alusão.

É importante lembrar que não é só o texto o produto da atividade discursiva, mas também as imagens, mesmo isoladas de outro sistema semiótico. Assim como nos textos, podemos encontrar nas imagens “intertextualidade”, diferentes enunciadores e dialogismo. A escolha da foto, o recorte escolhido, o posicionamento dos textos, a escolha da legenda, as técnicas da arte (nos exemplos de pinturas), etc. são escolhas que mudam o discurso proferido pela imagem. Hoje, com a crescente utilização da mídia gráfica em detrimento da mídia escrita, isso está cada vez mais presente.

O discurso para Fairclough é essencialmente uma forma de prática social e não uma atividade individual, como defendiam os teóricos anteriores, muito menos um simples reflexo de diferentes situações essencialmente cotidianas. É sobretudo elemento de ação interpessoal sobre o mundo, moldado pela estrutura social (diferença de classes, nível educacional, etc) ao mesmo tempo em que a regula e constitui, sendo portanto não apenas uma prática de representação do mundo, mas de sua significação também.

Assim, podemos dizer que o discurso contribui tanto para a construção de sujeito como para as relações sociais entre as pessoas e sistemas de conhecimento e crença, e também para transformar e tolher essas relações que são, antes de qualquer coisa, puramente históricas. Deve ser analisado através de uma perspectiva dialética em relação ao mundo, principalmente quando se trata de discurso como prática política e ideológica, já que quando é político, “estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (...) entre as quais existem relações de poder” [1], e quando é ideológico, “constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder” [2].

No entanto, apenas delimitar o discurso por sua prática social e sua prática discursiva não é o suficiente. Percebe-se que a prática social contém a prática discursiva, e ambas já estão delimitadas pelas relações econômicas, de classe social, etc. Entretanto falta um elemento essencial para regular essas duas práticas: o texto. Fairclough toma o texto não como a sintaxe em si, e sim como um processo de significação lexical, através da interpretação de signos sejam eles escritos ou simplesmente orais. A prática social é, portanto, uma dimensão do evento discursivo, da mesma forma que o texto. É válido então definir o discurso como um processo tridimensional, onde o texto está contido pela prática discursiva (centrada na produção, distribuição e consumo) e essa está contida pelas práticas sociais, ambas inter-relacionadas, inter-dependentes.

A análise lingüística constitui um processo complicado ao ser relacionado com a linguagem textual, não sendo aprofundada por Fairclough, pois seu interesse maior na elaboração da Teoria Social do Discurso é validá-lo como instrumento de mudança social, e não como mera construção lingüística. Concentrado na análise do discurso em sua concepção tríade recém explicitada, o autor propõe uma análise das relações de poder interpessoais estendidas para planos mais amplos do que os propostos por Foucault. Ou seja: além de identificar discursos nas mais diferentes mídias, Fairclough nos leva a analisá-lo em qualquer conversa corriqueira, percebendo que nenhum signo é inocente - como já havia definido Bakhtin – mas estendo essas teorias já estabelecidas para um campo de significados não herméticos, e sim mutáveis de acordo com a sociedade e ao mesmo tempo regulamentados e reguladores desta.

O discurso como texto é multifuncional, sendo toda oração uma mescla de significados ideacionais, interpessoais e textuais. São feitas escolhas desde o modelo de uma frase a ser dita – por exemplo, utilizar a palavra falecer ao invés de morrer em determinadas situações – até a modulação de voz, entonação, e outras formas de discurso não verbais, como a comunicação de ordem gestual, a indumentária, etc. São construídas então diversas lexicações (ou criação de palavras) sobre os mesmos signos, correspondendo às instituições, práticas e valores respectivos.
Algumas teorias de ideologia e hegemonia têm sido muito influentes no debate sobre discurso. Fairclough recorre às contribuições clássicas de Althusser e Gramsci para ampliar sua investigação do discurso como forma de prática social.

São três as bases teóricas fundamentais acerca da ideologia, de acordo com Althusser: A ideologia está presente nas práticas das instituições, sendo possível, portanto, uma investigação das práticas discursivas como formas materiais de ideologia; A ideologia como constituinte dos sujeitos, já que estes são interpelados por ela; A análise de discurso orientada ideologicamente pelos ‘aparelhos ideológicos de estado’, como locais e marcos delimitadores na luta de classe, apontando para a luta no discurso e subjacente a ele.

Althusser, porém, esbarra em uma contradição não-resolvida: a idéia da ideologia dominante imposta unilateralmente ao mesmo tempo em que coloca os aparelhos ideológicos como local de constante luta de classe (logo, de ideologia) e cujo resultado é sempre o equilíbrio. Para Fairclough, a predominância é da dominação imposta, de modo que a luta e a possibilidade de transformação ficam à margem.

As ideologias são constituintes da prática discursiva, em vários níveis, contribuindo para a produção, reprodução ou transformação das relações de dominação. Quando naturalizadas, ou seja, transformadas em ‘senso comum’, tornam-se muito eficazes. No entanto, Fairclough leva em conta a luta para remoldar e transformar as práticas discursivas ao encontrar práticas contrastantes em domínios particulares ou instituições, e atribui esse contraste às diferenças ideológicas.

A ideologia é tanto uma propriedade de estruturas quanto uma propriedade de eventos. As duas instâncias agem de maneira dialética. Se tomar a ideologia como propriedade de estruturas temos a virtude de mostrar que os eventos são restringidos por convenções sociais, essa visão acaba por impedir a transformação já que tem o pressuposto de que os eventos são mera reprodução dessas estruturas. Além disso, a opção da estrutura não explica os investimentos ideológicos das ordens de discurso e a possibilidade de investimentos diversos e contraditórios.

Os sentidos produzidos a partir de um texto estão imbuídos de ideologia, ainda que os textos estejam abertos a diferentes interpretações que podem ser variáveis de acordo com os eventos sociais a que correspondem e que os ‘consumidores’ do texto possam ter discernimento quanto à ideologia ali contida. As ideologias, de qualquer forma, estão presentes nos textos, pois ao mesmo tempo em que estão localizadas nas estruturas, de forma acumulada e naturalizada nas normas e convenções, sofrem uma atualização constante quando as estruturas condicionadoras são reproduzidas e transformadas.

É importante ressaltar que a ideologia não se encontra somente no ‘sentido’ das palavras no texto, mas que existem outros aspectos semânticos importantes a serem considerados, tais quais as pressuposições, as metáforas e a coerência. A forma do texto e seu ‘estilo’ também participam da orientação ideológica deste, como bem exemplifica Fairclough. Aí consiste a dificuldade na identificação de determinada ideologia (geralmente a dominante) em um discurso e sua utilização consciente. Essa identificação, no entanto, é possível e necessária para uma postura mais crítica e consciente em relação aos discursos a que somos submetidos. No momento em que surge uma interpelação contraditória (manifestando-se no sentido de confusão ou incerteza e na problematização das convenções) a prática da educação lingüística, com ênfase na consciência crítica dos processos ideológicos do discurso, pode desenvolver-se mais facilmente:

“ (...) os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas práticas e as estruturas posicionadoras.”[3]

A ideologia está presente nos discursos em graus diferentes. Nem todo discurso é irremediavelmente ideológico, como propunha Althusser. Um discurso científico, por exemplo, é menos investido ideologicamente do que a publicidade.

Hegemonia é, utilizando o conceito de Gramsci, um poder dominante que está em constante negociação com outras classes e forças sociais não hegemônicas. Age nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade. Desse modo, uma ordem de discurso pode ser considerada “a faceta discursiva do equilíbrio contraditório e instável que constitui uma hegemonia” (p.123). Assim, a luta hegemônica está presente na articulação e rearticulação de ordens de discurso e na prática discursiva: na produção, distribuição, consumo e interpretação de um texto.

O discurso se sustenta na luta hegemônica em diversas instâncias. Nas classes e em forças políticas, é claro, mas sobretudo em instituições particulares: famílias, escolas, tribunais de justiça, mulheres e homens, etc. O conceito de hegemonia fornece para o discurso uma matriz – isto é, como determinado discurso se articula com as relações de poder (reproduzindo, desafiando, etc.) – e um modelo, com uma análise da própria prática do discurso como luta hegemônica.

Quando surgem problematizações das convenções para os produtores ou intérpretes, com base nas contradições oriundas de mudanças sociais de valores, etc., tais dilemas são resolvidos através da criatividade e inovação do sujeito. É necessário que haja uma transgressão, uma recombinação de convenções, o rompimento de alguma norma pré-estabelecida. O que surge então é uma maneira nova de combinar convenções e elementos discursivos e códigos, que produzem cumulativamente mudanças estruturais nas ordens de discurso. A aparente democratização do discurso, que reduz a assimetria de poder entre as pessoas com poder institucional desigual e a ‘personalização sintética’ (discurso público para audiência em massa, no rádio, televisão, etc.) são exemplos de mudanças nas ordens de discurso. Estão ligadas à influência do discurso conversacional do domínio privado, do que era antes relativo ao ‘mundo da vida’, e agora está presente nos domínios institucionais.

Unindo e combinando aspectos da concepção de discurso de Foucault, da intertextualidade de Bakhtin, a concepção dinâmica da prática discursiva e seu reflexo na prática social levantada a partir das conceituações de poder existentes em Gramsci e ainda utilizando as formas tradicionais lingüísticas de análise de discurso, Fairclough chega a um quadro onde é possível fazer análise de discurso levando em conta o contexto social e a percepção da mudança no discurso.

Após explicitarmos alguns conceitos inerentes à análise de discurso, tentaremos discutir o trabalho que a mídia tem feito na criação de significados e convenções socialmente aceitos e petrificados, escorados na tese de doutorado - “Mídia, AIDS e Liberdade Sexual: os discursos de Veja e Isto É nas décadas de 1980 e 1990” - defendida pelo Prof. Dr. Paulo César Castro na Escola de Comunicação da UFRJ. No entanto, não pretendemos nos deter na sexualidade em si, mas sim utilizarmos seu conceito como forma de ilustração da construção do discurso feito, neste caso, por essas duas revistas semanais.

É observável que os meios de comunicação, de uma maneira geral, têm desempenhado um papel vital na edificação das representações sociais. Em outras palavras, a mídia não se configura apenas como um aparelho de representação, mas sim como um meio que molda visões de mundo e constrói a realidade de acordo com seus interesses. Os media não se limitam em passar a realidade adiante com o máximo de fidelidade; o que se percebe é uma produção do real, em que a realidade é construída de uma maneira a beneficiar os meios, ou melhor, determinados grupos que a propagam: “Os acontecimentos sociais não são objetos que se poderiam encontrar prontos em algum lugar da realidade e dos quais a mídia faria conhecer as propriedades e os avatares a posteriori com maior ou menor fidelidade. Eles só existem na medida em que são construídos pela mídia. (...) Os media informativos são o lugar onde as sociedades industriais produzem nosso real”.(Eliseo Veron:1981)

Tomamos como exemplo o caso do estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o Markito, que faleceu em 1983 vítima do vírus HIV. É a partir daí que a sociedade brasileira entrará em contato com esta doença que há muito já era conhecida pelos americanos e africanos, isto porque as duas principais revistas semanais do país (Veja e Isto É) iniciaram uma verdadeira cobertura sensacionalista do HIV e dos soropositivos. Além de categorizar a doença como sendo “de homossexual”, as revistas geraram uma associação imediata entre a homossexualidade e a peste epidêmica, a AIDS: “a homossexualidade será tomada como o vetor de propagação da AIDS no país, ou seja, a doença que começa a nos rondar é a conseqüência do comportamento e das práticas sexuais dos homossexuais”.
Faz-se necessário atentarmos para as vozes que serão escolhidas pelas revistas para falarem a respeito do assunto. Logo aqui podemos visualizar uma predileção pelo discurso médico, ou seja, Veja e Isto É atribuem credibilidade e autoridade às vozes da medicina, restringindo o debate acerca da AIDS e da sexualidade somente neste âmbito de discussão. Assim, constata-se o submetimento da doença a estratégias de enunciação específicas, caracterizadas por manobras discursivas que encerram uma manipulação das “verdades” sociais, isto é, os media colocam o médico na posição de legitimador de todo e qualquer discurso relacionado não só à Aids como também a questões associadas a ela: desde a sexualidade, abordada mais diretamente em toda sua esfera, até drogas, morte, intimidade, sangue e outros vários elementos que levam um caso a tornar-se notícia e ser submetido a coberturas midiáticas: “Esse primeiro emolduramento enunciativo [seção ‘Medicina’] será decisivo para mostrar a importância que os médicos terão como co-sujeitos do discurso das duas revistas, não apenas ajudando-as a tornar a doença inteligível para seus leitores, mas também, sobre ela e sobre a sexualidade, observando, explicando, classificando, advertindo, avaliando...”.

Com isso, como bem afirma Castro em sua tese, a AIDS deixa de ser um acontecimento meramente biológico e epidemiológico, e passa ser entendida como um fenômeno discursivo, que será, aliás, revelador de uma perspectiva por demais discriminadora e preconceituosa por parte das duas semanais, constatada a partir da cobertura espetacularizada que Veja e Isto É farão nas décadas de 1980 e 1990 do assunto. As capas, o teor e conteúdo das reportagens, a escolha das vozes autorizadas e inúmeras outras estratégias de enunciação irão servir de instrumentos de manipulação de opinião pública para atribuir à homossexualidade a responsabilidade da disseminação do HIV, criando no imaginário social a idéia de que a AIDS é a “peste gay”.

“Ainda mais porque as primeiras vítimas da Aids, durante praticamente toda a década de 1980 e os primeiros anos da de 1990, foram personalidades vinculadas ao mundo da indústria cultural (cinema, moda, teatro, TV, música), como Markito, Rock Hudson, Flávio Império, Cazuza, Lauro Corona, tidas publicamente como homossexuais ou que, pelas enunciações jornalísticas, foram assim apontadas ou, por outro, postas em situação de dúvida” – assinalou Paulo César Castro, acrescentando que “foi a partir desse aspecto que, nas primeiras matérias através das quais a Aids foi assunto nos meios de comunicação, ela foi apresentada como doença estranha que acomete os homossexuais masculinos.”

Assim, além de produzir o real, construindo discursivamente a AIDS e propondo noções para sua interpretação por parte da sociedade, os media também utilizaram a doença como ponto de partida para a criação de um discurso acerca da sexualidade como um todo, construindo suas significações e valores. A partir daí, os meios de comunicação (as revistas Istoé e Veja no caso) começam a adentrar na questão das práticas sexuais, criando, com base no discurso médico e em dados estatísticos de pesquisas nem sempre fundamentadas, um perfil de risco, que passa a associar certas práticas sexuais com a probabilidade de morte, tomada como certa a todos aqueles que padecem ou venham a padecer da doença. Pessoas com práticas e comportamentos sexuais considerados libidinosos, como alta freqüência de relações sexuais e troca constante de parceiro, principalmente os homo e bissexuais, eram postas como complacentes e até mesmo cúmplices, quando não responsáveis da epidemia: “Mais do que informar, a revista semanal de informação se propõe a convencer o leitor de que seu raciocínio é o certo. Portanto, uma das estratégias das duas revistas é, tomando a AIDS como ponto de partida, construir raciocínios sobre outros referentes, como hemofilia, morte, consumo de drogas, comércio de sangue, políticas públicas de saúde... e, principalmente, sexualidade”.

Hoje podemos observar que a AIDS não se restringe apenas aos registros estatísticos e às observações epidemiológicas, ela deve ser vista como um fato social, histórico, fisio-psciológico e simbólico. Como já foi dito anteriormente, a doença apresenta-se como uma problemática discursiva, que, assim sendo, se desenvolve reunindo diferentes campos de saberes e poderes, haja vista que no início de sua discussão ela foi tratada como “questão menor” pela esfera governamental, cabendo aos meios de comunicação a função de trazê-la a público, fazê-la “existir” para a sociedade, não só representá-la e anunciá-la, como também caracterizá-la e construí-la, posto que os media são um dos mais importantes dispositivos contemporâneos a estabelecer o espaço público e, conseqüentemente, a produzir o real.
Com o passar dos anos o perfil daqueles afetados pela doença mudou: houve um aumento da quantidade de casos envolvendo heterossexuais, não só homens, como também mulheres, além de englobar pessoas de todas as classes financeiras, fato que causa um grande alarde social, pois no início, a AIDS era associada somente a homossexuais e bissexuais masculinos, devido à maioria dos casos acontecerem com estes grupos. No entanto, como bem nos assegura Paulo C. Castro, “com o surgimento e o perigo da AIDS, o sexo transforma-se em um prazer arriscado, fazendo com que a doença se torne presente e aterrorize a sociedade, que precisa armar-se para a guerra contra o inimigo letal e invisível”. Assim sendo, o homossexual é o cúmplice e vetor do mau anunciado, e por assim ser, deve ser denunciado, deve ter suas práticas e comportamentos sexuais expostas, suas formas de prazer e seu modo de ser devem ser escancarados e julgados, avaliados, comentados e qualificados. Veja e IstoÉ, além de nomearem a sexualidade, qualificando-na e avaliando-na, tecem, a partir dessas operações, comparações, analogias, divergências e marcações de um lugar diferente em relação às “outras sexualidades”.

A partir daqui, podemos afirmar que é através de várias estratégias enunciativas, colocadas em prática pelas duas revistas, que a AIDS é elevada à categoria apocalíptica de artífice do juízo final, do qual só escaparão aqueles imaculados que se enquadram dentro de um perfil comportamental da sexualidade. A epidemia é tomada como pretexto para constatações, avaliações, sugestões e advertências acerca do comportamento sexual. “Já que a AIDS é conseqüência da homossexualidade, esta precisa, portanto, ser denunciada. Pelos holofotes simbólico-discursivos dos dois emissores, ela vai sendo levada à luz, expostas suas variações, suas formas de obter prazer, revelados os lugares a que pertencem”. Os médicos, com seu poderio do saber científico, fazem advertências e exortações legitimando o discurso construído pelo enunciador, que tenta revalorizar práticas e comportamentos sexuais anteriores às transformações ocorridas a partir dos anos 1960.

O discurso - prática social de produção de textos de acordo uma das leituras possíveis - das duas revistas analisadas não era fundamentalmente diferente; a diferença estava na forma como esse discurso era construído e ofertado por cada uma delas (enquanto a Veja agia de modo mais incisivo, declaradamente autoritário, a IstoÉ agia de modo mais simulado, aparentemente simétrico em algumas ocasiões). Assim, devemos lembrar que todo discurso é uma construção social, não individual, e que só pode ser analisado considerando seu contexto histórico-social, ou seja, suas condições de produção, pois baseados em um recorte de análise, no caso a sexualidade, podemos observar que o discurso reflete uma visão de mundo determinada, necessariamente vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que vive(m).



BIBLIOGRAFIA

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