Introdução a Bakhtin :: 2004/2 - Marxismo e Filosofia da Linguagem :: Capítulo III

Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva
Por AnnaVirginia Sinclair e Suzana Corrêa Barbosa

O sentido de uma palavra não existe em si mesmo, mas, ao contrário,
é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são (re)produzidas.

Michel Pêcheux

Se nos detivermos na frase de Michel Pêcheux, saltarão aos nossos olhos afinidades bastante contundentes entre este analista de discurso, que compartilhou a época, a origem francesa e o primeiro nome com outro pensador caro para o círculo acadêmico, Michel Foucault, e Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem e crítico literário que testemunhou o advento da Rússia Socialista na primeira metade do século. Ao menos uma indagação incisiva parece-nos manifesta à primeira análise: o que, afinal, teria feito dois homens que se encontram separadas de forma tão significativa pelos tapumes do tempo e do espaço perpetrarem seus respectivos discursos com falas tão em sintonia uma com a outra?

Pode ser que a resposta, ou ao menos parte dela, esteja contida na própria sentença de Pêcheux, que, intencionalmente ou não, retoma a fala bakhtiniana em muitos de seus aspectos mais relevantes. No processo de dialogia proposto por Bakhtin e, de certa forma, espelhado no pensamento de Pêcheux, tudo aquilo que é dito pode ser inserido numa cadeia infinita de enunciados que nunca perdem o nexo uns com os outros. Assim sendo, tornar-se-á fundamental que todos “renunciemos aos nossos hábitos monológicos”, como defendia Bakhtin, uma vez que é por ser re-significada e reproduzida a todo instante que a linguagem se distingue por sua faculdade de dialogar com outras idades e culturas.

Mas o que levou Bakhtin a considerar tanto a linguagem, a ponto de tomá-la como fio condutor de seu pensamento acerca das relações e tensões sociais que constituem a vida do homem? Ora, o signo é a arena da luta de classes. A palavra é o signo ideológico por excelência e lugar-comum tanto do psiquismo quanto da ideologia. Extremar um termo limítrofe que separe os dois campos, quando não sub-reptícia, é uma escolha no mínimo assaz ingênua. Afinal, para ser assimilado, o fenômeno ideológico terá que ser necessariamente decifrado na esfera do signo interior. Caso acreditássemos que o homem carece de qualquer tipo de tensão interior, como se todos os seus dramas não lhe pertencessem e sua totalidade psíquica fosse completamente administrada por um fenômeno que lhe é alienígena, estaríamos o reduzindo a um títere social, uma reles estatística, um ser tão-somente reativo, e não pró-ativo, às mudanças que ocorrem ao seu redor. Não é bem assim.

Em suas próprias palavras, “os processos que, no essencial, determinam o conteúdo do psiquismo desenvolvem-se não no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles”. Portanto, podemos depreender que, não obstante Bakhtin deseje produzir uma análise objetiva da nossa consciência através da filosofia da linguagem, em nenhum momento ele ignora as relações dialógicas que se estabelecem entre psiquismo e ideologia. De acordo com Bakhtin, toda atividade mental é exprimível e sua exteriorização vale-se do material semiótico para se materializar. “Todo produto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintintivos das manifestações ideológicas.”

Assim que é proferida, a língua automaticamente denuncia o conteúdo sócio-ideológico que lhe é inerente. Ao contrário do que se faz crer no psiquismo, a consciência não é a expressão inalienável da individualidade humana, mas sim um fenômeno que pode – e deve - ser circunscrito dentro do material ideológico de sua época. Mesmo pensar o sujeito enquanto um indivíduo que detém a autoria de seu pensamento ou a espontaneidade de sua fala é, em última instância, uma reflexão ideológica. (Pois aqui o pensamento bakhtiniano escancara sua herança marxista, porquanto aceita que “não é a consciência do homem que determina o ser, mas é o ser social que determina a consciência.”)

Na verdade, o homem-indivíduo é, antes e acima de tudo, uma construção cujas entranhas são preenchidas por uma forte carga de ideologia burguesa. Esta, por sua vez, estaria a toda hora diligenciando mostrar-se ao mundo como uma espécie de sistema de idéias mais fidedigno à natureza humana. Pois isto é o mesmo que dizer que ideais como liberdade, igualdade e fraternidade – ou pelo menos a interpretação capitalista para cada um deles – atuam como representantes legítimos de aspectos que, antes da Revolução Francesa, operavam de forma latente (porém inextirpável) na humanidade, quando o mais provável é que a mesma Liberte, Egalité et Fraternité francesa seja tão-somente uma construção sócio-ideológica, cujo significado foi extraído a partir de uma série de confluências no jogo histórico.

À vida, noções particularmente burguesas do amor, da família e do trabalho, por exemplo, são assimiladas e intuídas como intrínsecas à natureza do homem. Não são. Amar, pelo menos da forma como hoje o fazemos, não é um código inabalável de nossa condição humana. Outros já amaram de formas diferentes em épocas diferentes, e que hoje poderiam nos parecer estranhas e até mesmo erradas. Uma das idéias mais vendidas do capitalismo protestante, a de que o trabalho seria a mais nobre forma de elevação espiritual do indivíduo, seria vista de uma maneira muito diferente – mas não necessariamente inferior ou superior – pela Roma antiga ou quiçá pela Nova York dos dias de hoje.

E ainda: como ideologia dominante, não é de se estranhar que a burguesia busque apagar o caráter plurivalente do signo e naturalizar uma concepção de mundo que se adapte aos seus interesses e à aparelhagem de seu corpo ideológico. Signo é poder. A história é, portanto, o relato dessa busca pelo poder. Disso decorre uma acusação, a manipulação, e uma vítima, a massa. Mas o que é massa? Ou ainda, o que é manipulação? Será que existe mesmo uma elite burguesa que se encerra numa sala em algum lugar obscuro do mundo para determinar as melhores estratégias (políticas, econômicas, culturais, semiológicas etc.) que serão aplicadas para controlar esta “massa” restante?

Ora, fabular um inimigo de trajes maquiavélicos – neste caso, a burguesia – com a capacidade – e a fleuma – para manipular o resto da sociedade é uma alternativa que peca tanto pela simplicidade quanto pela obviedade de suas pretensões. Se a história pode de fato ser escrita como uma história de dominantes e dominados, as fronteiras que separam os dois mundos não são de forma alguma inequívocas. Muito pelo contrário.

Na realidade, a forma como a ideologia burguesa encontrou para ser canonizada e solidificada como a ideologia dominante é um processo tão complexo e sofisticado que nem sempre o carcereiro, ou seja, o burguês, consegue escapar ao cárcere que ele próprio confeccionou para “manipular” as massas e acaba de fato acreditando na preponderância, ou melhor, na univocidade da sua ideologia perante todas as outras, como se, de certa forma, houvesse uma realidade unidimensional onde nenhuma mudança fosse possível. Pois é preciso reconhecer que, para garantir sua sobrevivência, o processo ideológico precisará contagiar todos os degraus da hierarquia social.

O discurso não se configura necessariamente dentro de uma lógica evolutiva. Passado e futuro entremeiam-se em uma teia inconsútil de signos e significados que, por sua vez, tornam-se cúmplices no tempo e na história através do estabelecimento de um elo dialógico entre eles. Às vezes, voltar atrás pode ser uma forma de dar um passo adiante; são, afinal, as condições de existência humana que determinam o uso do signo e do discurso, e estas serão irrevogavelmente inseridas dentro de uma dada perspectiva histórica.

A língua não pode ser definida como um sistema, uma vez que, sendo movida e edificada por sujeitos concretos, não goza nem de homogeneidade nem de estabilidade suficiente para tal. Não estamos, é claro, afirmando que o dinamismo lingüístico se liquefaça em uma espécie de abismo niilista, sem qualquer tipo de parâmetro que aja como mediador ou regulador dentro do jogo discursivo. Podemos, sim, acusar a existência de códigos – aqui estamos falando de todos eles, desde os lingüístico-culturais até os sócio-econômicos – desde que admitamos que estes possuam um prazo de validade que, destarte, irá eventualmente expirar. (Embora seja certo afirmar que ainda não temos – e provavelmente nunca teremos - um bisturi metodológico para determinar o quando, o como ou o porquê deste processo com a precisão cirúrgica que muitos teóricos gostariam).

Daí inclusive parte a crítica de Bakhtin ao objetivismo abstrato de Saussure, que pensa a língua como algo estático e externo ao sujeito. Posicionando-se mais uma vez contrário a Saussure, Bakhtin também defendia a idéia de que o estudo da língua deveria começar pela fala, e não pela linguagem. Uma vez habilitada para ser o objeto de análise desta nova filosofia da linguagem, a fala deixa de ser tratada como uma singularidade – uma exposição do individual e, portanto, improfícua na hora de avaliar o coletivo - e passa a expor as querelas sócio-culturais de um grupo.

A elegia contemporânea é encenada por um homem que se assume ao mesmo tempo revolucionário e conservador, e que a toda hora encontra-se capturado numa relação dialética com o seu patrimônio cultural. Nenhuma ideologia se resolve com facilidades: o acervo cultural de um povo encontra-se em um estado interrupto de renovação e atualização e, à medida que o signo é relaborado, novos significados vão sendo depositados e formas diferentes de pensar ganham força na sociedade. Nas palavras de Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Acima de tudo, Bakhtin é um autor que antecipa a morte de suas palavras e que, inclusive, aguarda-a com inegável entusiasmo. Não vejamos, porém, a morte como um fim, uma extremidade que extirpe para sempre a abertura dialógica entre tudo o que foi dito e tudo o que ainda paira por dizer, se a proposta aqui deslanchada é justamente a oposta. O que Bakhtin deseja é ter sua própria voz voltada contra si mesma, convocando-nos para viver em um mundo que tem como única certeza a incerteza e que, gostemos ou não, sempre será dialético e polifônico, incerto e paradoxal, dinâmico e imprevisível. Nenhuma palavra é a última palavra, nenhum signo encerra um só significado e nenhum começo nasce entregue a seu epílogo. Ser capaz de mudar a si próprio e o meio que o circunda com não é uma escolha, é uma vocação. Até, é claro, que se prove o contrário.

Introdução a Bakhtin :: 2004/2 - Cultura Popular e Pós-Modernidade